A casa grande da Avenida Angelica estava toda iluminada.
O Shabat já tinha terminado.
A luz ainda estava acesa no dormitório dos 4 garotos de 5 e 6 anos. Eles estavam sentados, cada um na sua cama, vestindo pijama com estampas diferentes .
Eles aguardavam Miriam, a irmã mais velha. Sabiam que se comportaram muito bem e que a recompensa seria uma história antes de dormir.
Miriam entrou no quarto, deu um beijo de boa noite em cada um dos meninos e eles deslizaram para dentro dos lençóis.
-“Vai nos contar uma historia?” insistiu um menino de cabelos castanhos com franjinha e olhos verdes..
Miriam sorriu, sentou-se numa das camas, passou a mão na cabeça, num gesto de quem não sabe o que vai contar, e começou.
-“Bem, hoje vou contar a história da Aninha e de sua cachorrinha “
E, começou.
Aninha era uma menina de 13 anos e meio, de família muito humilde e morava em São José, um bairro pobre de João Pessoa que fica na Paraíba. Ela era a mais velha; por isto tinha que cuidar de suas 4 irmãzinhas. Só podia ir á escola se a mãe, que era diarista, ficasse em casa. O pai tinha falecido. O sonho de Aninha, que apesar de muito jovem era muito madura, era sair de São José e ir para São Paulo trabalhar, ganhar dinheiro e estudar. Aninha queria se tornar professora. A prima Elsa, esta sim, tinha um emprego bom em São Paulo. Aninha tinha pedido secretamente para prima arrumar um lugar para trabalhar. Um dia veio carta da prima avisando que podia vir para São Paulo, pois tinha arranjado um emprego numa casa de família e com a carta veio o dinheiro da passagem e o endereço. Então, chegou o dia e, mesmo com o coração apertado se despediu da mãe e dos irmãozinhos tristes. Mas era o seu futuro…..
Foi assim que Aninha, aos 14 anos foi trabalhar na mansão de madame.
Madame morava numa casa muito grande lá na rua Estados Unidos com os gatos Pife e Pafe e seu cachorro Mingo, um dálmata todo manchado. A casa estava sempre cheia de visitas e Aninha cozinhava, lavava e cuidava de tudo sozinha. Era muito trabalho, mas ela gostava, pois tinha o seu cantinho, um quartinho bem modesto mas só dela. Ela logo se acostumou com estava vida.
Um dia a menina teve que ir numa farmácia um pouco distante da casa. Ao sair, viu um cachorrinho de pelo marrom com colarinho e focinho branquinho que, sentado, olhava para ela meio triste.
Era pequeno, um filhote sem raça definida. Ela ficou encantada com ele, chegou perto, fez um carinho e em agradecimento recebeu duas lambidas. Com o coração apertado ela se separou do cãozinho e foi andando de volta para casa.
No entanto, o cachorrinho começou a segui-la. Quando ela parava, ele também parava. Ela continuou andando e o cãozinho a seguia. –“Você não pode vir comigo!” -“Vai embora..” E ela continuava o seu caminho. Mas o cãozinho a seguia abanando o rabinho. –“vá… xô.. não quero você.” Aninha olhou para ele e num desespero exclamou –“Não pode vir comigo e eu não posso te levar. Madame vai brigar comigo!” Bateu com os pés, tentou afugentar o animalzinho, mas de nada adiantou. Ele fazia meia volta, tentando enganá-la e retornava trotando atrás dela. Durante todo o trajeto foi assim.
Aninha tentou correr, se esconder atrás de um poste, de uma árvore, mas não houve jeito de espantar este bichinho que não desgrudava dela.
Quando chegou no portão, empurrou o quatro patas e, rapidamente, entrou. O que Aninha não sabia, é que havia um buraquinho na cerca e foi aí, que o cachorro conseguiu atravessar.
Ela nem tinha chegado perto da porta quando viu o cãozinho sentado no primeiro degrau da escada, com as orelhinhas em pé todo feliz. “Ai, meu Deus!” pensou. –“O que é que vou fazer com você?!”
O olhar do animalzinho tocou o seu coração de menina.
Então, não resistiu, pegou ele, escondeu no avental e correu para o seu quarto. Madame já chamava por ela.
Rapidamente abriu uma gaveta da cômoda que forrou com uma toalha e lá acomodou o animalzinho a quem deu o nome de Vicky. –“Preste bem atenção”, disse “Não pode chorar, latir ou fazer qualquer barulho, entendeu?!” e foi atender madame.
E assim os dias passavam. Aninha trabalhava mas dava umas escapadas para cuidar da Vicky com quem ela dividia as suas refeições. De noite, após o trabalho, ia passear no jardim da casa onde ela ensinava o animalzinho a pegar jornal, dar a patinha, rolar e fazer reverência e outras coisas também.. Tudo, em segredo, sem madame saber. Vicky parecia entender e adorava os momentos quando Aninha a pegava no colo e ficava conversando acariciando a sua cabecinha. Assim, a amizade entre os dois foi se fortalecendo a cada dia.
Vicky estava crescendo, estava mais gordinha, seu pelo se tinha tornado dourado e macio, as orelhas estavam mais firmes e foi necessário trocar a sua moradia “da gaveta” para ‘debaixo da cama’. Só que Vicky não ia ficar muito tempo sozinha! Os gatos Pife e Pafe logo a descobriram e os três se tornaram grandes amigos bagunceiros.
Pife era um gato siamês de olhos verdes com o pelo branco e cinza, sempre pronto para qualquer brincadeira e Pafe, um belo gato preto que só se preocupava com a sua “toalete” e ficava horas se lambendo na sombra de uma árvore que havia no jardim.
Durante o dia, enquanto Aninha trabalhava, os três brincavam, bagunçando todo quarto de Aninha que ficava “de pernas pro ar”. Aninha dava bronca, mas isto de nada adiantava. Os gatinhos desapareciam num piscar de olho e Vicky ia se esconder debaixo da cama.
Certo dia, Aninha saiu para fazer compras. Quando voltou deixou as compras na cozinha e, como sempre fazia, foi para o quarto para ver Vicky,. Ao abrir a porta, ficou atônita !
Lá estava madame, grudada no chão como uma estatua e Vicky sentada tranquilamente no tapetinho do quarto abanando o rabinho e os gatinhos assustados debaixo da cama. –“O que é isto, quem te deu permissão de trazer um cão na minha casa?” Ela gritava –“Garota, você tem uma semana para se livrar deste animal. Se ele ainda estiver aqui depois, vocês vão pra rua, os dois! Entendeu bem!”
Aninha tentou explicar, mas madame estava muito brava e não queria ouvir nada.
Devia ter contado sobre a Vicky desde o principio, foi um erro! Agora estava muito arrependida por não o ter feito!
Aninha correu, abraçou Vicky e chorou. Não sabia o que fazer, tinha se apegado muito àquele animalzinho que era tudo para ela. No entanto, não tinha para onde ir. O que fazer; voltar para João Pessoa ? De jeito nenhum ! A prima certamente não ia poder ajudar; ela estava em casa de outra madame!
Então, no dia seguinte, Aninha pegou o cãozinho, levou-o e, muito a contragosto, foi oferecendo Vicky para as pessoas da vizinhança . Foi de porta em porta para ver se alguém ia querer ficar com a cachorrinha . Ninguém a queria nem mesmo as pessoas na rua. Tentou todos os dias e quando chegou o fim de semana, Vicky ainda estava com ela. Não houve outro jeito; foi falar com a patroa . – “Madame”, disse ela -“Ainda não consegui me livrar do meu cãozinho; me dá mais três dias, por favor.” e madame concordou.
Durante os dias seguintes, a menina saiu diversas vezes para fazer compras, tentar encontrar um novo lar para Vicky e se separar dela.
Então no segundo dia aconteceu algo inesperado. Enquanto Aninha estava ausente, o jornaleiro veio e jogou o jornal de madame na porta de entrada que estava aberta. Escondida debaixo de uma cadeira, Vicky resolveu que esta era a oportunidade de mostrar o que tinha aprendido . Abocanhando o jornal foi trotando, com rabinho abanando, em direção da poltrona onde madame estava confortavelmente acomodada e lá o deixou. A surpresa de madame foi grande, mas não fez comentário sobre o ocorrido.
No final do terceiro dia. Vendo que não podia se desfazer da Vicky,
Aninha , muito triste, começou a juntar as poucas roupas dentro da sacola. Madame tinha sido bem clara, ‘rua para os dois’.! … e ela ia para rua…
No quarto dia, de manhã cedo, ela vestiu sua roupa velha, deixou o uniforme em cima da cama, pegou a sacola, a cachorrinha e foi falar
com sua patroa.
– “ Olha madame, eu vim me despedir. Não consegui me desfazer da Vicky! Acho que vou embora do jeito que madame falou”.
Então, madame olhou aquela garota magrinha com o olhar triste que estava diante dela segurando uma sacola velha e um cãozinho pintado. Parou um instante, pôs a mão na cintura, e ficou pensativa. Aquele quadro a deixou emocionada e pensou: –“Não posso deixar esta menina ir embora assim, é uma boa garota, trabalhadeira e a cachorrinha.. é uma gracinha..”
Por um minuto o tempo parou… Finalmente ouviu-se a voz de madame.
-“ Pensei melhor e decidi que você pode ficar com a tua cachorrinha, porém com uma condição: ela não pode mais ficar no teu quarto, terá que ficar lá fora e você terá que cuidar disto!”
O rosto da menina se iluminou. Jogou a sacola no chão e perguntou sem acreditar no que ouvia
–“Posso mesmo ficar ?” Madame sorriu e fez sim com a cabeça. Aninha , num impulso de alegria pulou no pescoço de madame e a beijou e, Vicky levantou as patas da frente, e soltou um latido diferente, algo como “muito obrigado…”.
Assim, Aninha permaneceu trabalhando naquela casa . Madame começou a tratar Aninha de uma maneira diferente, como se fosse sua família. Contratou outra pessoa para fazer o serviço pesado e fez questão que Aninha voltasse a frequentar a escola.
Quando Aninha voltava da escola , lá estava Vicky fazendo festa, pulando de alegria para o colo de Aninha. Agora ela podia brincar com a cachorrinha sem temer madame.
O que ela não sabia, é que madame também se afeiçoou a Vicky que ela mesma levava passear na ausência de Aninha.
Vicky trouxe muita alegria àquela casa!
Por coincidência, Aninha ficou sabendo que madame também era natural de João Pessoa e que o nome de ‘madame’ era Zuleide.
Com o tempo, Mingo e Vicky começaram a namorar e logo Vicky tornou-se mamãe de uma linda ninhada toda manchadinha.
…………………….
Miriam sorriu olhando para as quatro camas. Os meninos tinham adormecido.
Ela então levantou, fechou as cortinas, cobriu cada um, apagou a luz e saiu do quarto sem fazer barulho.