Compra Virtual

compra virtual

Estamos em janeiro. O dia está cinzento. O sol se escondeu. Da minha janela posso ver os galhos das palmeiras dançando num ritmo frenético, embalados por um vento forte.  Sinto-me influenciada por esta tarde triste de verão invisível. Mas é preciso reagir!

Estou diante da tela do meu querido ’Regis’ (de registrador). É o nome que dei ao Notebook.

De repente relembro.

-“Alô.. Sim, quero…”  Finalmente consegui (pela  primeira vez da minha vida) fazer uma compra pela internet. O que foi mesmo?  Ah, sim, agora me recordo. Comprei para finalmente me livrar da interminável sequência de propagandas que aparece ao solicitar  “assistir online”.

Por ser a minha primeira compra, preciso de ajuda!  Sou analfabits!  E, para esclarecer dúvidas e evitar probabilidade de erros, pego o telefone e digito os números que aparecem na tela. Aguardo…  Está chamando..

Uma voz, parecendo feminina atende e, para a minha surpresa,  a “voz” é de um rapaz!

-“ ..Que bom,  então irá me ajudar passo a passo.!”

-“ .. Fala de Londres?!  Mas eu liguei para um número de telefone do Brasil..!”

-“.. Nunca poderia imaginar que ao digitar no Brasil, Londres iria me atender!” O avanço da tecnologia me surpreende cada dia mais!”

Percebo que alguns segundos se passam entre uma palavra e outra e logo imagino que deve ser a mesma coisa que vi tantas vezes na televisão durante reportagens internacionais.  Sempre há aquele espaço de segundos até que a pessoa, do outro lado, receba a mensagem.

A ‘Voz’ me guia dando instruções sobre o procedimento.  É uma voz de articulação jovem, alegre e perfeita.  Conversamos e fico sabendo que a “Voz” do outro lado da linha é estudante de tecnologia computorizada.  Contrário aos desejos de uma renomada família de médicos, por livre escolha, deixou a casa dos pais e decidiu lutar para realizar o seu sonho sem ajuda parental.  E, conseguiu!  Ele,  me confidencia que tem poucos amigos da sua idade e que é pouco sociável com jovens de idade semelhante.  Somente agora, após entrar na universidade, é que começou a ter contato com os outros estudantes.

-“ Meus amigos sempre foram pessoas mais velhas; eu não suporto conversas fúteis”.

Haveria muito mais para se conversar. As duas horas e meia no telefone simplesmente voaram.

“..Sim, vamos conversar um pouco mais por e-mail.. “

Preciso desligar.  Sei que a conversa foi demorada, demorada sim, mas muito proveitosa.

A prudência me diz que seria irresponsável da minha parte causar eventual  transtorno  a esta “Voz” que tão gentilmente atendeu o meu pedido e esclareceu todas as minhas dúvidas.

Esta tarde de verão cinzenta, de repente, se tornou alegre!  O vento forte  continua  balançando os galhos das palmeiras,  mas a tarde não me parece mais ‘triste’!

Ganhei um novo amigo, a ‘VOZ’ de articulação jovem, alegre e impecável  que me ajudou na primeira compra virtual!

 

 

 

 

 

 

 

 

Publicidade

Marie Claire por Marie Claire

O texto a seguir foi usado na minha apresentação no IV Congresso do Envelhecimento Ativo na Câmara Municipal de São Paulo, dia 22/09/2018

MClaire

Meu nome é Marie Claire. Sou francesa de Paris e sou sobrevivente do holocausto.  Minha infância se resume a corridas para abrigo das bombas, a esconderijos e constante mudança de endereço para evitar ser presos pela Gestapo (policia secreta nazista).

Até os 12 anos, vivemos como nômades, de cidade em cidade e de um país para outro em meio às ruinas de guerra. Até que o dia em que meu pai recebeu uma carta de um amigo que o aconselhou a vir para o Brasil,  país do futuro.  Foi assim que, após uma longa viagem de navio, chegamos neste país que nos acolheu tão bem.  Para mim foi o fim de “sentir fome”.

O tempo passou como passa para todos. Estudei, me formei em línguas e trabalhei. Casei, tive um filho e fiquei viúva.

Mas o destino me reservou uma dura prova.  Perdi meu filho no seu quadragésimo aniversário e na véspera do seu casamento.

Fiquei completamente órfã; órfã de pai, mãe, marido e filho (de todos os familiares pois foram exterminados pelos nazistas)

É claro que fiquei sem rumo. Este luto foi uma experiência totalmente nova na minha vida, mas não me entreguei.  Resolvi que iria sofrer tudo que tinha de sofrer e chorar tudo que tinha que chorar para poder, em algum momento, levantar a cabeça, enxugar as lágrimas e olhar para frente.

Foi assim que dei um novo significado para a minha velhice e que ampliei a minha visão sobre o envelhecimento.

Faço parte do grupo de danças Israeli e coral da terceira idade da UNIBES. Sou blogueira, e é no meu blog  “palavreando.blog de Marie Claire Blatt” que se encontram os meus trabalhos. Também estudo violão clássico e popular.

Sou cronista e escrevo contos e histórias de memória que depois de musicados são apresentados em casas de longa permanência, residencial para idosos e Centros Dia.

Trabalho como voluntária numa clinica onde ajudo na terapia ocupacional e quando sobra tempo visito pessoas  enfermas, onde faço leitura, conto histórias ou simplesmente mantenho conversação.

Participei ativamente da Virada da Maturidade onde já atuei como Repórter Cidadão e também com uma palestra sobre o livro Velhice uma Nova Paisagem da psicóloga Maria Celia de Abreu que trabalha a velhice como  uma nova paisagem para resignificar o envelhecimento e atualmente frequento um curso de Jornalismo Profissão Repórter 60+ cujo intuito é proporcionar reciclagem e atualização a pessoas com mais de 60 anos, possibilitando a sua reintegração no mercado de trabalho.

Hoje, me parece que os anos foram passando tão rapidamente e ao mesmo tempo devagar e difíceis.  No entanto, estou feliz por ter passado pelas diversas paisagens da vida.

Agora, no processo do envelhecimento sei de uma coisa, estou vivendo sem me preocupar se chegarei aso 90 ou 100.  Afinal a poção ou elixir da eternidade ainda não foi encontrado e saber envelhecer é continuar fazendo acontecer momentos alegres, felizes e plenos.

Aprendi a olhar a vida com otimismo e vontade de viver e fazer com que os  anos atuais e os a virem se tornem uma “Bela Velhice”

História de Memória: O pequeno montador de aviões

lua

O nome dele era Gabriel.

Era um menino de onze anos que frequentava a escola como qualquer outro menino da idade dele.

Ele era um bom aluno e muito esforçado, mas mesmo assim os professores não estavam satisfeitos com ele.

Nas provas ele sempre tirava ‘ótimo’ e quando os professores faziam perguntas ele sempre tinha a resposta certa.  Quando  ele fazia perguntas aos professores estes diziam que eram perguntas interessantes e inteligentes.

No entanto, os professores não estavam satisfeitos com ele.

Gabriel não conseguia  ficar sentado no mesmo lugar por mais de cinco minutos. Ele simplesmente não conseguia!  Os professores comentavam entre si que ele mais parecia uma mola, não parava quieto…

Acontece que o professor ficava explicando  a aula inteira coisas que ele já sabia .  Então ele ficava entediado e, especialmente durante a aula de história, Gabriel ficava  no mundo da lua, sonhando.

O pai de Gabriel era professor de história  e todos os dias, depois do jantar,  ele ficava lendo história com o filho explicando os detalhes da época.  Por isso, quando o professor dava aula e ensinava  Gabriel achava tudo muito bobo.

Então, ele ficava passeando entre as carteiras apesar das broncas.

Gabriel não aguentava mais  ficar o dia inteiro sentado e  sonhava, sonhava !

Ficava cortando papel em pedacinhos pequenininhos e fazia aviões e aí ficava concentrado. Ele era ótimo na fabricação de aviões! Descobriu que quando se faz um avião de papel muito estreito, ele logo cai.  Então ele  fazias as asas mais compridas e tomava cuidado para que as dobras fossem exatas e finas, quase como se fossem passadas a ferro.  Assim, seus aviõezinhos ficavam bastante tempo voando de um lado para outro na sala de aula.

Certa vez, ele se pôs a testar um desses aviões no meio da aula.  Não o fez por mal, ele não queria atrapalhar o professor, de jeito nenhum!  Mas ele estava tão concentrado no seu avião que esqueceu que estava no meio de uma  aula.

O professor ficou muito nervoso e o mandou direto para o diretor.

Gabriel teve que levar uma carta do diretor para o pai assinar.  O pai ficou bravo com ele  e triste.

Gabriel não tivera a intenção de atrapalhar os seus colegas de classe e também não fora a intenção dele de causar tristeza ao pai.   Por isso, no dia seguinte se esforçou para prestar atenção  nas aulas.  Ele tentou, mas não dava.  Ele já sabia tudo que o professor ensinava e concluiu  “Não tenho quase nada para fazer na classe!”

Certo dia, depois da aula, o professor o chamou para a sala dos professores.

“Ouça Gabriel”  ele disse  “Talvez você seja o menino com a maior capacidade da turma. Apesar disto eu não estou satisfeito contigo, e você sabe muito bem disto.

Gabriel não sabia o que responder.  Naquele mesmo instante  ele estava dobrando uma folha de papel.  O professor, com jeito,  pegou a folha das mãos de Gabriel, fez algumas dobras e depois mostrou a ele um barquinho.  “Está vendo” disse ele “Isso eu também sei fazer.  A pergunta é qual a utilidade disso?”

Gabriel permaneceu em silêncio.

O professor olhou para dentro dos olhos do menino e disse  -“Eu sei qual é o seu problema.  Quando você chega na escola, tudo aquilo que vou ensinar já está bem armazenado em seu cérebro. Daí, durante a aula você sente que não tem mais o que fazer, não é mesmo?”

Gabriel  fez sim com a cabeça.

-“Então por que você se ocupa com bobagens?” perguntou o professor  -“Você poderia ficar em casa e fazer algo mais útil.  Se você não faz nada na classe, deveria aproveitar melhor o seu tempo em casa”.

Gabriel permaneceu em silêncio, ele não tinha o que responder.

-“Vá para casa e tente voltar amanhã com uma solução para o problema” terminou o professor. Passou a mão  na sua cabeça e foi embora.

Naquele dia Gabriel ficou sentado em casa pensando em alguma solução mas não a encontrou.

A tardinha, como sempre, o pai chegou e disse “Gabriel, vamos  estudar?”  De repente uma ideia iluminou a mente de Gabriel.

-“Papai” disse ele  -“Podemos estudar uma outra  parte de história, outro episódio, ou uma passagem que não estou estudando na escola?”

O pai se espantou com a pergunta  -”Porque você não quer estudar aquela parte que você está estudando na escola?”

-“Porque se estudo antes, na aula já sei tudo e ficou entediado”  respondeu o menino.

– “Eu gostaria de chegar  na aula e ouvir tudo que o professor ensina,  como uma novidade, pela primeira. Com você, papai, eu poderia aprender outra coisa”.

O pai ficou muito contente com aquela ideia.  Naquela tarde sentaram e leram outro episódio.

Foi assim que a partir daquele dia, Gabriel na classe  ouviu sentadinho, com vontade e interesse as palavras do professor.  O menino chegou à conclusão que matéria nova é sempre cativante  e gostosa de ser estudada e que é legal sentar e prestar atenção ao professor dando aula de maneira tão legal.

No entanto,   Gabriel nunca parou de montar seus aviõezinhos de papel. Mas este   trabalho tão “importante”   só podia  ser feito depois das tarefas de casa.

Hoje ele é Engenheiro Chefe da montagem de aviões numa importante empresa aeronáutica.

 

 

A dívida: uma história de memória

divida paga

Vera estava na Rua da Consolação. Carros e ônibus trafegavam nas duas mãos.

Nas calçadas havia muitas pessoas caminhando e nas lojas o movimento era grande.

De repente, Vera  ficou parada e  boquiaberta.  Ela não podia acreditar no que estava vendo.  Clara, sua irmã que falecera há pouco tempo passeava normalmente entre as pessoas.

Vera correu para alcançar a irmã e perguntou  -“ O que você está fazendo aqui; você deveria estar  no outro mundo!”   Clara começou a correr e Vera atrás dela até chegar no mercadinho do Sr. Adão que fica na esquina da Rua Caio Prado, onde ela tinha visto a sua  falecida irmã entrar.  Porém ela tinha desaparecido.

Vera ficou confusa e procurou entre as gondolas repletas de produtos alimentícios… e nada encontrou, sua falecida  irmã tinha desaparecido de repente.

Depois de alguns segundos, Vera acordou do seu estranho sonho.  Tudo que lhe pareceu tão real se desfez como o fazem os sonhos.

O resto da noite ela ficou se virando na cama de um lado para o outro, sem conseguir dormir.

Então já acordada começou a pensar sobre o estranho sonho e o que poderia significar.  Será que tinha algo de verdadeiro ou simplesmente um sonho de bobagens? Poderia ser alguma profecia?… Como descobrir? Quem poderia responder?  Porque Clara correu e porque desapareceu justo naquele lugar?

O dia já estava claro e ela resolveu ir ao local sonhado.  Talvez pudesse encontrar alguma pista sobre a mensagem do sonho.

Ela saiu de casa e chegou à rua  que começava a acordar com o movimento dos carros, caminhões,  motos e os ônibus.  Pessoas andavam apressadamente, peruas escolares paravam para recolher as crianças. Imagens comuns de todas as manhãs,  desta vez reais.

Então parou para pensar: e a sua irmã, o que ela tinha a ver com esta cena?

Foi pensando que ela começou a caminhar em direção à esquina da Rua Caio Prado. Sem se dar conta, ela parou justamente na frente do mercadinho do Sr. Adão.  Ela parou muito surpresa.  Seu irmão também estava lá pensativo.

-“Bom dia… O que você está fazendo aqui?”  perguntou ela.  Seu irmão morava longe e não tinha nada para fazer alí.

– O que  “você”  está fazendo aqui a esta hora?”  disse ele ainda mais admirado.

– Afinal, qual o motivo que o trouxe até aqui?”  insistiu Vera

– Eu  pergunto a mesma coisa”  reclamou ele.

-“Eu sonhei com a Clara” disseram os dois ao mesmo tempo.

A continuação da conversa dos dois foi ainda mais surpreendente. Os sonhos dos dois foram iguais.  Aquela conversa dos dois parecia outro sonho estranho.

-“… e ela desapareceu aqui neste mercadinho”,  foi a  ultima frase dos dois relatos.

Depois de alguns momentos, se entreolharam neste clima de mistério e entraram no mercadinho.

Se aproximaram do Sr. Adão que estava ocupado com as contas atrás do balcão.

-“Bom dia. O senhor conheceu  Clara Berg?” perguntaram os irmãos.

-“Não, quem é ela?” respondeu o homem, sem parar de digitar os números na calculadora.

-“Ela é nossa irmã  e faleceu há pouco tempo. Respondeu Vera.

Eles contaram todo o sonho e o homem olhou para eles desconfiado.

-“Desculpem mas eu não sei quem ela é. Não me lembro de nenhuma cliente com este nome.

-“Procure, por favor” pediram os irmãos “Olhe nos seus registros, talvez o Senhor  encontre alguma coisa entre as anotações.

O homem ficou comovido com toda história e com a expectativa dos dois irmãos.

Apesar de estar muito ocupado,  foi procurar nas fichas de clientes.

-“Não achei  nada. Sinto muito” disse ele depois de alguns minutos de espera.

-“Por mais que eu tente,  não me lembro de nenhuma devedora com este nome.”

-“Mas  tem mais cartões de clientes?” insistiram eles.

-“Infelizmente não tenho” respondeu “Mas, pensando bem,… eu tenho cartões muito antigos arquivados.  Posso procurar lá também.”

Ele enrugou a testa enquanto pensava onde tinha guardado o arquivo antigo.

Então, numa gaveta empoeirada encontrou as fichas e começou a verificar uma por uma cuidadosamente até que encontrou o nome de Clara Berg.

-“Achei! Sim, sim! Aqui consta que ela me deve duzentos e setenta e quatro reais.” Disse ele. “Uma divida antiga que ainda não foi paga.”

Totalmente chocados, os irmãos começaram a revirar os bolsos para entregar  a quantia  àquele senhor  que os olhava sem muito entender.   Então entregaram o valor ao Sr. Adão.

A dívida estava  liquidada e saldada!

Os irmãos trocaram olhares e sorrindo despediram-se, cada qual seguindo o seu caminho.

“Que grandes méritos possuía  Clara para poder aparecer em nossos sonhos” pensou Vera.  Ela ainda estava muito perturbada com tudo que tinha acontecido. e não conseguia se acalmar.

“Não são todas as pessoas que conseguem passar uma mensagem como esta!”.

E quem sabe quantas dividas esquecidas  nós temos. Cada um de nós, por aí? Valores pequenos ou grandes que devemos a outras pessoas e que acabam no esquecimento.  Mas ter o mérito de quitá-las, não são todos que têm.

A Cicatriz

cicatriz

Raquel era uma menina de 11 anos que estava passando alguns dias com os pais e a irmãzinha num hotel fazenda em Nazaré Paulista no Vale do Paraíba.  O hotel ficava um pouco afastado da cidade e havia lá perto uma pequena floresta  com árvores e muitas flores pequenas espalhadas pela grama. Era uma paisagem muito linda.

Um dia, Raquel saiu para passear com a irmãzinha no seu carrinho e pararam em frente a uma árvore bem alta na entrada da floresta. Raquel estava brincando com a irmãzinha quando de repente apareceu um bando de rapazes e moças. Não eram do hotel, talvez de alguns bairros próximos de lá. Eram selvagens e barulhentos.

Logo que a menina os avistou ficou assustada. Não havia onde ir e então ela resolveu subir na árvore e lá se esconder.  Mas eles  perceberam e correram na sua direção.  Raquel já tinha subido bastante quando percebeu que tinha deixado a irmãzinha embaixo, no carrinho.  Eles se aproximavam rápido, cercaram a árvore e começaram a agitá-la.

O tronco da árvore era fino e por isso balançava de um lado para o outro e Raquel se agarrava a ele com todas as suas forças para não cair, chorando e pedindo que parassem.  Mas, para aqueles selvagens era apenas uma boa diversão, eles não deviam saber o que faziam, mas para a menina era um risco de vida.

Embaixo, a irmãzinha chorava e estava em prantos; as moças a balançavam como se fosse uma boneca.

Então apareceu um menino de uns 12 ou 13 anos. Ele correu em direção ao bando e pediu a eles que parassem com aquilo. A resposta foi que um dos rapazes lhe deu chute dizendo  –“Desapareça daqui! Isso não é da sua conta!

O menino olhou para Raquel e percebeu o pavor nos olhos dela.

-“Vá, chame ajuda!” gritou ela enquanto os outros balançavam a árvore.

Os selvagens riam e um deles disse animado –“Ela não aguentará, vai cair a qualquer momento!”

Então o menino tentou atrapalhar chutando as pernas e puxando a camisa dos rapazes que davam socos nele.  Num certo momento o menino mordeu a mão de um deles que gritou e ameaçou: – “Isso vai te custar caro”!

Foi aí que todos foram por cima do menino.  Ele tentou fugir fazendo sinal para ela descer da árvore.  Mas os rapazes o seguraram e passaram a bater nele com uma tábua.  Enquanto isso Raquel desceu da árvore, pegou a irmãzinha e  correu para o hotel, onde pediu ajuda. O socorro foi até o local.

Depois de algum tempo voltaram carregando o corpo do menino ensanguentado. Raquel quis se aproximar  mas a mãe não deixou e a mandou para o quarto descansar.

Mais tarde disseram-lhe que o menino tinha ido para um hospital e que ele estava apenas ferido.

Alguns anos se passaram, Raquel cresceu,  tornou-se uma linda moça, mas nunca esqueceu este episódio.

Quando completou  19 anos os pais começaram a lhe apresentar pretendentes para casar.

Mas os  pretendentes não tinham sucesso porque Raquel era muito exigente.  E assim foi durante 4 anos. Raquel já estava com 23 anos e os pais estavam preocupados..

Certo dia, os pais propuseram a ela conhecer um rapaz.  As informações sobre ele eram excelentes.  Ele tinha 26 anos.  Raquel não entendia o por que um rapaz de boa família, inteligente e bonito  ainda não tinha encontrado uma noiva.

Então,  apresentação aconteceu  e Raquel  logo entendeu a razão  dele ainda não ter encontrado uma noiva.  Era realmente muito especial, inteligente, esperto, simpático e também alto e bonito, porém tinha uma horrível cicatriz no rosto. Uma cicatriz repelente que começava no olho e chegava até o queixo.  Um rosto bonito e delicado – e aquela cicatriz estragava tudo.

A resposta de Raquel naturalmente foi NÃO.  Mas os pais insistiram e pediram –“Tente novamente, talvez você se acostume”.

Raquel então se encontrou mais algumas vezes com ele e ficou entusiasmada  com a sua personalidade, mas sempre aparecia a cicatriz que estragava tudo.

Com certeza isto também devia ter acontecido com as outras moças que tinham saído com ele. Elas se entusiasmavam  com o ser humano, mas a cicatriz  afugentava todas.

Depois de cinco encontros, ele disse que gostaria de se casar com ela se tudo corresse bem dali em diante.

Raquel começou a gaguejar e dar algumas desculpas confusas, disse a ele que era um ótimo rapaz, mas os olhos se fixaram na cicatriz.

-“Eu sei o que significa o “se” e o “mas” disse  ele. – ‘Se você não conseguiu superar agora, então nunca vai superar”.

Raquel ficou em silencio e não sabia o que responder.

Enquanto caminhavam  em direção à estação do metrô   ela de repente perguntou: -“Como foi que você ganhou esta cicatriz ?”

-“É uma longa história.” Disse ele. “Eu tinha 12 anos e uns cinco rapazes me bateram com uma taboa.   O problema é que havia um prego preso nela e foi ele que rasgou o meu rosto… Nem sei porque  estou lhe contando isso, você vai pensar que sou provavelmente uma pessoa briguenta”.

Raquel ficou pálida. E perguntou –“Onde foi isto?” Ele então disse o nome da cidade.  –“E como foi que você chegou lá? “    – “Meus tios estavam lá e nos fomos visitá-los. Havia um bosque, tipo floresta,  e lá alguns jovens estavam maltratando uma menina pequena  e eu só tentei ajudá-la  para que pudesse fugir.  Quase me mataram com seus golpes. É isso. Eu já tinha conseguido esquecer tudo, mas você sabe, nesses encontros eu sempre relembro o que aconteceu.”  Ao dizer estas palavras seus olhos ficaram úmidos.  Ele estava lutando para não chorar. E conseguiu, mas Raquel não.

Ela caiu em prantos, chorando e soluçando. O rapaz só ficava olhando perplexo, sem entender.

Finalmente sentaram num banco e Raquel conseguiu contar a ele que a menina que ele salvara era ela.  Ele não acreditou. Pensou que ela estava brincando. Mas ao acrescentar vários detalhes a esta história Raquel mostrou a ele que era pura verdade.

Não há palavras para descrever a felicidade que Raquel sentiu naquele momento.

De repente todas as dúvidas sumiram e a cicatriz que a fizera dizer “não”, foi a mesma que a fez dizer “SIM”.

Naquela mesma noite decidiram se casar e viver feliz.

Então Raquel agradeceu a Deus pela cicatriz do marido, pois fora ela que o tinha guardado todos esses anos somente para ela.

História verídica adaptada

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O pequeno comerciante

Rafa estudava na  sexta série.  Era um aluno bastante aplicado que tinha muitos amigos.

Todos o  chamavam de comerciante.

Sabem por quê?

Ele sempre descobria alguma coisa para ganhar dinheiro. Certo dia, quando a  estação das nêsperas  estava no auge, ele teve uma brilhante ideia.

-É preciso explicar que as sementes de nêspera faziam o papel de bolinhas de gude e a meninada adorava.-

Então, preparou cem saquinhos pequeninos, colocou dentro de cada um quinze sementes de nêspera  e amarrou com uma fita amarela.   No recreio, vendeu os saquinhos por vinte centavos cada.

Fazendo a conta, cem vezes vinte centavos dá  vinte reais.  Assim, ele ganhava essa quantia pelas sementes que não lhe tinham custado absolutamente nada!

E este era somente um exemplo dos empreendimentos.  Ele sempre pensava em alguma outra boa ideia que logo colocava em prática.

No inicio daquele ano Rafa teve uma ideia espetacular!  Pegou a sua caixinha de economias de onde tirou uma quantia e foi comprar dez cartões sortidos com mensagens bonitas de Natal.  Depois foi a um lugar onde tinha uma máquina de xerox  e fez oito cópias de cada cartão.  Ficou com oitenta cartões novos – e mais os dez originais.  Em seguida, colou os cartões sobre uma cartolina grande e dividiu-a em dez cartelas menores, cada uma com oito cartões diferentes e tirou  xerox  destas cartelas.

No dia seguinte Rafa chegou  na escola com a sua “mercadoria”  e colocou um aviso: “Venda de cartões de Natal na sexta série”.  Isto provocou um tumulto entre os alunos.  Todas as cartelas foram vendidas no primeiro dia!

Naquela escola havia um grande número de alunos.  Muitos decidiram que valia a pena pagar um real por oito cartões “fabricados” por ele em vez de dois reais por um só cartão original.

Alguns alunos até compraram várias cartelas.

Rafa voltou para casa com trezentos reais no bolso!  Cada transação significava um lucro excelente.

No dia seguinte ele xerocou o dobro.  Essa quantidade também desapareceu e naquele dia ele voltou para casa com mais seiscentos reais.  Ao ver a sua caixinha de economia sentiu que estava muito rico, pois já havia quase setecentos reais.

Assim, passaram os dias.  A cada dia Rafa vendia mais cartões. A notícia se espalhou e crianças de outras escolas também quiseram comprar as cartelas e ele lucrava e lucrava!

Mas lucrava dinheiro e negligenciava os estudos.

Em todas as aulas Rafa ficava sonhando e calculando quantas cópias fazer, quanto lucraria com elas e quanto precisaria para fazer mais cópias.  De vez em quanto o professor chamava a sua atenção, mas ele estava totalmente envolvido nos negócios e em longas colunas de números.

Em um dos intervalos, no auge da ”venda”, quando muitas crianças lotavam a classe, o professor apareceu de repente.

Os garotos ficaram sem jeito e foram escapando para fora.  Em poucos segundos Rafa ficou a sós com o professor.

-“Agora estou entendo a sua decaída nos estudos“ disse o professor.  -Sua cabeça está nos “negócios”, e por isso você não consegue estudar!

Ele então pegou uma cartela de cartões, observou-a longamente. Rafa  percebeu que seu rosto estava ficando cada vez mais severo.  Suas sobrancelhas se levantaram e ele se dirigiu a Rafa com a voz aguda.

-“Diga-me..  Você pediu permissão para copiar estes cartões?

-“De quem eu preciso pedir permissão?” perguntou Rafa.

– De quem  produz os cartões, claro¹”  respondeu o professor.  -“Ele investe grandes quantias de dinheiro na produção.  Você compra um cartão, faz centenas de cópias e, em vez de pagarem para ele pagam para você. Isto lhe parece direito?

Rafa ficou espantado    “Como é que não tinha pensado  nisto antes?”, e ponderou com seus botões  “Se eu não tivesse feito cópias dos cartões, muitas crianças os teriam comprado na loja, e a pessoa que os imprimiu é que lucraria.  E eu roubei dela!”.

– “O que farei agora?”   Perguntou ao professor ao perceber o seu erro.

-“Eu  acho que você deve devolver o dinheiro àquele a quem roubou” – disse o professor.

Então na saída da escola Rafa se dirigiu à loja e pediu ao vendedor o endereço do produtor dos cartões. O vendedor olhou para ele com assombro e desconfiança, mas no fim deu o número de telefone.

Rafa foi para casa e, com a mão tremula, telefonou para o fabricante.

Uma voz adulta atendeu. Ele se apresentou.  Pela  voz dava para perceber que a pessoa  do outro lado da linha não estava entendo por que uma criança estava ligando para ele.  Rafa, então com a voz meio que trêmula explicou o motivo do telefonema.  O homem prestou atenção, de vez em quando interrompia com perguntas curtas e objetivas e, por sua vez estava muito surpreso.

Depois de terminar, o homem pediu o numero de telefone do menino  e disse que ligaria mais tarde.

De noite o telefone tocou.  O pai de Rafa atendeu.

-“Sim, aqui é o pai dele“.  Depois calou-se   e ouviu a história do homem.  Seu rosto ficava mais sério a cada instante.  Ele estava muito bravo.

A conversa terminou com pedido de desculpas por parte do pai que aceitou alguma ideia que o homem deve ter sugerido.

Depois, o pai  colocou o telefone no gancho, virou-se para Rafa e disse

-“Agora entendo a sua decadência nos estudos!”

O menino  começou a chorar e o pai esperou até ele se acalmar e depois disse  -“O fato de você ter ligado para o produtor prova que certamente está arrependido pelo que fez, e que agiu sem saber. Entendo que você goste de ser “comerciante”, mas você também sabe que há coisas mais  importantes do que isto.  Para minha tristeza vejo que você não pensou naquilo que tantas vezes eu te expliquei. Quanto a grande quantia de dinheiro que você lucrou, o homem me disse que ele perdoa de bom grado.  Mas ele impôs uma condição para isso: a metade do dinheiro deve ser doado  para os pobres e a outra metade deve ser guardada no banco até o seu casamento.  Você só terá direito de usá-la se for muito esforçado e se tornar um ótimo aluno..

O pai contou a Rafa o que o homem tinha dito  -“ Se ele usar a cabeça que tem para os estudos, esse dinheiro será um presente para o dia do seu casamento.  Caso contrário, o dinheiro voltará para mim.”

E é claro que Rafa  concordou.

Por causa desta história, no dia seguinte,  o diretor da escola entrou em todas as classes e avisou que daquele dia em diante, ele não permitiria mais que fossem feitos “negócios” dentro dos limites da escola.

Nem todas as crianças entenderam e Rafa , então, foi contar para eles que “negócios” são assuntos de adultos.  Isso desvia a atenção das crianças dos estudos e que isso pode fazê-los tropeçar, assim como tinha acontecido com ele.

Foi assim que Rafa passou a se dedicar aos estudos ano após ano.

Esta história o acompanhou até o dia em que se formou sob o olhar orgulhoso do pai.

 

 

Estação Rodoviária

Cheguei na  Estação Rodoviária do Tiete.  Muita gente… um zum zum  zum.. pessoas vindo, indo, carrinhos, malas com rodinhas,  um turbilhão muito agitado e constante … De longe avisto finalmente o guichê de passagens.  Uma fila… crianças, senhoras, rapazes e … não vejo nenhum sênior.  Sou a única  velha da fila.  Tento me fazer respeitar e aproveitar a tal da preferencial da terceira idade… mas aqui não funciona… Todos estão estressados e cada um quer ser o primeiro da fila.  De repente, surge não sei de onde, um rapazola de  túnica amarela onde se destaca um crachá com  o nome da companhia.  Timidamente el chega para perguntar de voz baixa -“Alguém vai pagar com cartão?”.  Eu me adianto pensando   “é aí que passo na frente de todos”.  O jovem sorri ao me ver nervosa.  -“Fique calma senhora,  eu a levo até lá,  não precisará esperar”.  Ufa, que alivio.  Ele, gentilmente me ajuda e se encarrega de levar a mala; eu respiro mais aliviada!  Lá, no final do corredor abre-se uma porta de vidro e ingresso numa sala repleta de caixas automáticos, são dez ao todo, Cinco de cada lado.  No fundo, um balcão onde duas moças uniformizadas se revezam para atender viajantes.

O  rapazola Lucas,  pergunta o meu itinerário. Eu digo Campos do Jordão e pergunto se o ônibus para antes de chegar ao seu destino.  Lucas não parece ter muita experiência.  Ele interpela uma das moças de uniforme  -“Sim, em Aparecida” . Então se dirige a um dos caixas e começa a digitar.  Eu não entendo nada! A máquina vomita vários comprovantes;  comprovante de viagem, de seguro, do cartão, cópia do comprador, cópia do vendedor,  é muito papel que ele me entrega sorridente.  Verifico os ‘tickets’ .  Não, não pode ser…. eles indicam como destino Aparecida… e já está tudo pago… Solto um oh, seguido de ai e desesperada já começo a imaginar o pior… Em meio a este turbilhão de pessoas e de máquinas, o que é que vou fazer em Aparecida!!!!    Mas então vem a moça de uniforme, no crachá o seu nome Graciele.  -“Está tudo bem Lucas, eu faço o estorno e emito nova passagem”. Lucas se confundiu,  ouviu Aparecida e esqueceu Campos do Jordão.  Graciele é muito gentil,  e permite que eu fique sentada ao seu lado enquanto digita o estorno num pequeno computador.  Finalmente, após 45 minutos está tudo corrigido. Graciele riu muito me assegurando que,  rezar em Aparecida, certamente ficará para  outra ocasião.   Agora o meu destino é certo.  Respiro aliviada.  Ela sorri, me acompanha até a grande porta de vidro e me indica o terminal  onde devo pegar o ônibus.  A mala está cada vez mais pesada. O corredor  do Terminal de Ônibus  parece interminável.  -“É só pegar o elevador” diz um senhor de meia idade.  -“A escada rolante está logo ali” diz uma moça.  Estou cansada e não vejo o elevador.  Vou pela escada rolante e a mala pesa!  Um rapazinho tem pena e se oferece para me ajudar a descer com a mala.   Aleluia!  Finalmente cheguei no portão de embarque!

Despacho a minha mala e subo no ônibus.  Minha poltrona é do lado do corredor. Sento. Nada mais me preocupa, são três horas de viagem e até lá vou fechar os olhos e relaxar.  Como se isto fosse possível !!!   Na minha frente um senhor de cabelos grisalhos, já no início da viajem, inclina o seu banco totalmente para traz e me deixa prensada… Nem posso esticar as pernas! Ao meu lado uma senhora  sentada de pernas cruzadas, muito magra, com cabelo grisalho me dá um sorriso seco!  Eu penso: -‘como é que ela consegue cruzar as pernas num espaço tão estreito?’  Me acomodo como posso e o ônibus inicia a sua trajetória.  Nem saímos ainda de São Paulo, ela tira os óculos e começa a me contar que só vai passar alguns dias fora, que foi casada,  agora é viúva, tem três filhos e relata o que cada um faz.  Ela é pianista e eu quero dormir… Fecho os olhos, mas ela está tão empolgada que continua sem se dar conta que fechei os olhos…. E a viagem segue; falta pouco, apenas mais uma horinha… Minha vizinha não parou de falar um minuto sequer.  Quando penso que vai se fazer silêncio, o passageiro de trás começa a puxar conversa com o passageiro do lado. Uma voz alta de barítono que acorda todo ônibus.  Agora a chance de relaxar está cada vez  menor…  Ainda bem que trinta minutos passam rapidamente. Finalmente chego ao meu destino.  Os passageiros já estão enfileirados, prontos para descer.  E, a senhora continua falando atrás de mim. Ela não tem bagagem, bate no meu ombro e diz .  – “Tirou uma boa soneca, né! Então, até logo e boa estadia” .  Será que não percebeu que eu só estava fingindo! Desço,  me dirijo ao bagageiro , pego a minha malinha e me apresso em direção ao carro que acaba de chegar.  Estou feliz em rever o rosto querido da minha amada amiga.

 

 

 

Carta de um espelho

Passados quatro anos olhou-se no espelho novamente…

Espelho, espelho meu, diga –me:  sou agora diferente?

Querida

Quando o teu semblante, tua imagem alegre e o brilho dos teus olhos verdes refletiram, pude imediatamente entender que ali está a felicidade. Ver este rosto iluminado com o sorriso alegre é simplesmente contagiante.

O tempo passou e você parece ter esquecido as preocupações e  toda tristeza. Posso ler a tua mente e, te vejo  passear por um campo cheio de margaridas onde o vento sopra suavemente.  São as mesmas margaridas cujas sementes tua querida mãe costumava plantar e regar até crescerem e transformar o solo do jardim num alegre tapete colorido.

Como é bom sentir a tua imagem traduzir a felicidade e o amor, pois a vida, apesar dos seus obstáculos, vale a pena ser vivida.

É em mim que resplandece a alma e, é com o seu reflexo que se pode ver quem está do outro lado.

Amiga, eu sou o teu espelho e quero te ver sempre assim.  Quero poder refletir sempre esta imagem alegre, tão divertida e comunicativa.

Também preciso te dizer que estou grato por aquilo que você reflete e pelo sentimento de amor que emana, sentimento este que é a essência de tudo.

Keep smiling!

Vicky a cachorrinha pintada

 

A casa grande da Avenida Angelica estava toda iluminada.

O Shabat  já tinha terminado.

A luz ainda estava acesa no dormitório dos 4 garotos de 5 e 6 anos.  Eles estavam sentados, cada um na sua cama, vestindo pijama com estampas diferentes .

Eles aguardavam Miriam, a irmã mais velha.  Sabiam que se comportaram  muito bem e que a recompensa seria uma história antes de dormir.

Miriam entrou no quarto, deu um beijo de boa noite em cada um dos meninos e eles deslizaram para dentro dos lençóis.

-“Vai nos contar uma historia?” insistiu um menino de cabelos castanhos com franjinha e olhos verdes..

Miriam sorriu, sentou-se numa das camas, passou a mão na cabeça, num gesto de quem não sabe o que vai contar, e começou.

-“Bem, hoje vou contar a história da Aninha e de sua cachorrinha “

E, começou.

Aninha era uma menina de 13 anos e meio, de família muito humilde e morava em São José, um bairro pobre de João Pessoa que fica na  Paraíba. Ela era a mais velha;  por isto tinha que cuidar de suas 4 irmãzinhas. Só podia ir á escola se a mãe, que era diarista, ficasse em casa.  O pai tinha falecido.  O sonho de Aninha, que apesar de muito jovem era muito madura,  era sair de São José e ir para São Paulo  trabalhar,  ganhar dinheiro e estudar. Aninha queria  se tornar professora.   A prima Elsa, esta sim, tinha um emprego bom  em São Paulo. Aninha  tinha pedido secretamente para prima arrumar um lugar para trabalhar.  Um dia veio carta da prima avisando que  podia vir para São Paulo, pois tinha arranjado um emprego numa casa de família e com a carta veio o dinheiro da passagem e o endereço. Então, chegou o dia  e, mesmo com o coração apertado se despediu da mãe e dos irmãozinhos tristes.  Mas era o seu futuro…..

Foi assim que Aninha, aos 14 anos foi trabalhar na mansão de madame.

Madame morava numa casa muito grande lá na rua Estados Unidos  com  os gatos Pife e  Pafe  e  seu cachorro Mingo, um dálmata todo manchado.  A casa estava sempre cheia de visitas e Aninha  cozinhava, lavava e cuidava de tudo sozinha. Era muito trabalho,  mas ela gostava, pois tinha o seu cantinho, um quartinho bem modesto mas só dela.  Ela logo se acostumou com estava vida.

Um dia a menina teve que ir numa farmácia um pouco distante da casa.  Ao sair, viu um cachorrinho de pelo  marrom com colarinho e focinho  branquinho que, sentado, olhava para ela meio triste.

Era pequeno, um filhote sem raça definida.  Ela ficou encantada com ele, chegou perto, fez um carinho e em agradecimento recebeu duas lambidas. Com o coração apertado ela se separou do cãozinho e  foi andando de volta para casa. 

No entanto, o cachorrinho começou a segui-la.  Quando ela parava, ele também parava.  Ela continuou andando e o cãozinho a seguia.  –“Você não pode vir comigo!”  -“Vai embora..”  E ela continuava o seu caminho. Mas o cãozinho a seguia abanando o rabinho.  –“vá… xô.. não quero você.”  Aninha olhou para ele e num desespero exclamou –“Não pode vir comigo e eu não posso te levar.  Madame vai brigar comigo!” Bateu com os pés, tentou afugentar o animalzinho, mas de nada adiantou.  Ele fazia  meia volta, tentando enganá-la  e retornava trotando atrás dela. Durante todo o trajeto foi assim.

Aninha  tentou correr, se esconder atrás de um poste, de uma árvore, mas não houve jeito de espantar este bichinho que não desgrudava dela.  

Quando chegou  no portão, empurrou o quatro patas e, rapidamente,  entrou.   O que Aninha  não sabia,  é que havia um buraquinho na  cerca e foi aí,  que o cachorro conseguiu atravessar. 

Ela nem tinha chegado perto da porta quando viu o cãozinho sentado no primeiro degrau da escada, com as orelhinhas em pé todo feliz.  “Ai, meu Deus!” pensou.    –“O que é que vou fazer com você?!”  

O olhar do animalzinho  tocou o seu coração de menina.   

Então, não resistiu,   pegou ele, escondeu no avental e correu para o seu quarto.  Madame   já chamava por ela. 

Rapidamente abriu uma gaveta da cômoda que forrou com uma toalha e lá acomodou o animalzinho a quem deu o nome de Vicky.  –“Preste bem atenção”, disse  “Não pode chorar, latir ou fazer qualquer barulho, entendeu?!”   e foi atender madame.

E assim os dias passavam.  Aninha   trabalhava  mas dava umas escapadas para cuidar da Vicky com quem ela dividia as suas refeições.  De noite,  após o trabalho,  ia  passear no jardim da casa onde ela ensinava o animalzinho a pegar jornal, dar a patinha, rolar e fazer reverência e outras coisas também..  Tudo, em segredo, sem  madame saber.  Vicky parecia entender e adorava os momentos quando Aninha  a pegava no colo e ficava conversando acariciando a sua cabecinha.  Assim, a  amizade entre os dois foi se fortalecendo a cada dia.

Vicky estava crescendo, estava mais gordinha, seu pelo se tinha tornado dourado e macio, as orelhas estavam mais firmes e foi necessário trocar a sua moradia  “da gaveta”  para ‘debaixo da cama’.      Só que Vicky não ia ficar muito tempo sozinha! Os gatos Pife e Pafe logo a descobriram e os três se tornaram grandes amigos bagunceiros.

Pife era um gato siamês de olhos verdes com o pelo branco e cinza, sempre pronto para qualquer brincadeira e Pafe, um belo gato preto  que só se preocupava com a sua “toalete”  e ficava  horas se lambendo na sombra de uma árvore que havia no jardim.

Durante o dia, enquanto Aninha trabalhava, os três brincavam, bagunçando todo quarto de Aninha que ficava “de pernas pro ar”.  Aninha dava bronca, mas isto de nada adiantava. Os gatinhos desapareciam  num piscar de olho e Vicky ia se esconder debaixo da cama.

Certo dia, Aninha saiu para  fazer compras.  Quando voltou deixou as compras na cozinha e, como sempre fazia, foi para o quarto para ver Vicky,.  Ao abrir a porta, ficou  atônita !

Lá  estava madame, grudada no chão  como uma estatua  e Vicky sentada tranquilamente no tapetinho do quarto abanando o rabinho e os gatinhos assustados debaixo da cama.   –“O que é isto, quem te deu permissão de trazer um cão na minha casa?” Ela gritava   –“Garota, você tem uma semana para se livrar deste animal. Se ele ainda estiver aqui depois, vocês vão pra rua, os dois!  Entendeu bem!”       

Aninha tentou explicar,  mas madame estava  muito brava e não queria ouvir   nada.

Devia ter contado sobre a Vicky desde o principio,  foi um erro! Agora estava muito arrependida por não o ter feito!

Aninha correu, abraçou Vicky e chorou.  Não sabia o que fazer, tinha se apegado muito àquele animalzinho que era tudo para ela. No entanto, não tinha para onde ir. O que fazer; voltar para João Pessoa ? De jeito nenhum !  A prima certamente não ia poder ajudar; ela estava em casa de outra madame! 

Então, no dia seguinte, Aninha pegou o cãozinho,  levou-o e, muito a contragosto, foi oferecendo Vicky para as pessoas da vizinhança .  Foi de porta em porta para ver se alguém ia querer ficar com a cachorrinha .  Ninguém  a queria  nem mesmo as pessoas na rua.  Tentou todos os dias e quando chegou o fim de semana, Vicky ainda estava com ela. Não houve outro jeito; foi falar com a patroa . – “Madame”, disse ela  -“Ainda não consegui me livrar do meu cãozinho; me dá mais três dias, por favor.”  e madame concordou.

Durante os dias seguintes, a menina saiu diversas vezes  para fazer compras,  tentar encontrar um novo lar para Vicky e se separar dela.

Então no segundo dia aconteceu algo inesperado.  Enquanto Aninha estava ausente, o jornaleiro veio e jogou o jornal de madame na porta de entrada que estava aberta. Escondida debaixo de uma cadeira, Vicky resolveu que esta era a oportunidade de mostrar o que tinha aprendido . Abocanhando o jornal foi trotando, com rabinho abanando, em direção da poltrona onde  madame estava confortavelmente acomodada e lá o deixou.   A surpresa de  madame  foi  grande,  mas não fez  comentário sobre o ocorrido.

No final do terceiro dia.  Vendo que não podia se desfazer da Vicky,

Aninha , muito triste, começou a juntar as poucas roupas dentro da sacola.  Madame tinha sido bem clara, ‘rua para os dois’.!  … e ela ia para rua…

No quarto dia, de manhã cedo, ela vestiu sua roupa velha, deixou o uniforme em cima da cama,  pegou a sacola,  a cachorrinha e foi falar

com sua patroa.

 – “ Olha madame, eu vim me despedir.  Não consegui me desfazer da Vicky!   Acho que vou embora do jeito que  madame falou”.

Então,  madame olhou aquela garota magrinha com o olhar triste que estava diante dela segurando uma sacola velha e um cãozinho pintado.  Parou um instante, pôs a mão na cintura, e ficou pensativa. Aquele quadro  a deixou emocionada e pensou:  –“Não posso deixar esta menina ir embora assim,  é uma boa garota, trabalhadeira  e a cachorrinha.. é uma gracinha..”

Por um minuto o tempo parou… Finalmente  ouviu-se a voz de madame.

-“ Pensei melhor e decidi que você pode ficar com a tua cachorrinha, porém com uma condição: ela não pode mais  ficar no teu quarto, terá que ficar lá fora e você terá que cuidar disto!”

O rosto da menina se iluminou. Jogou a sacola no chão e perguntou sem acreditar no que ouvia 

 –“Posso mesmo ficar ?”   Madame sorriu e  fez sim com a cabeça. Aninha , num impulso de alegria pulou no pescoço de madame e a beijou e, Vicky  levantou as patas da frente, e soltou um latido diferente, algo como “muito obrigado…”.

Assim, Aninha permaneceu trabalhando naquela  casa . Madame começou a tratar Aninha de uma maneira diferente, como se fosse sua família.  Contratou outra pessoa  para fazer o serviço pesado e fez questão que Aninha voltasse a frequentar a escola.

Quando Aninha  voltava da escola , lá estava Vicky fazendo festa, pulando de alegria para o colo de Aninha.  Agora ela podia brincar com a cachorrinha sem temer madame.

O que ela não sabia,  é que madame também se afeiçoou a Vicky  que ela mesma levava passear na ausência de Aninha. 

Vicky trouxe muita alegria àquela casa!

Por coincidência, Aninha ficou sabendo que  madame  também era natural de João Pessoa e que o nome de ‘madame’ era Zuleide.

 

Com o tempo, Mingo e Vicky começaram a namorar e logo  Vicky tornou-se mamãe de uma linda ninhada  toda manchadinha.

 

…………………….

 

Miriam sorriu olhando  para as quatro camas. Os meninos tinham adormecido. 

Ela então levantou, fechou as cortinas, cobriu cada um, apagou a luz e saiu do quarto sem fazer barulho.

História de memória: Uma tarde no shopping

 

Sai de casa com o firme propósito de comprar um novo travesseiro numa das lojas do shopping.

Naturalmente, comprei… mas não um travesseiro  e sim uma calça nova e para combinar, um tênis novo …

De posse das minhas compras e orgulhosa dos meus pacotes, decidi descansar  e tomar um café na Kopenhagen.

Fazer compras cansa!!

Todas as mesinhas estavam ocupadas. Mas,  lá,  no cantinho direito do quadrado da loja,  avistei uma cadeira, aliás duas cadeiras livres.  A terceira estava ocupada por uma senhora  de aparência oriental tomando, o que devia ser um chocolate.  Ela olhou para mim, para os meus pacotes, sorriu e, com a mão, fez um sinal, dando a compreender  que eu podia me acomodar ao seu lado.

Me  ajeitei na mesa, ou melhor,  na cadeira com as minhas enormes sacolas sob os olhares da senhora  que olhava para mim e para as sacolas… para as sacolas e para mim.  De repente, perdeu a timidez oriental, sorriu e fez a observação   “- Senhora comprou muito né?”.  Fiquei surpresa com  o comentário vindo de uma pessoa  estranha .  Como resposta  apenas abanei a cabeça alegremente.

Meu café chegou.   Então teve inicio  a conversa sobre o tempo, sobre  o novo prefeito e  sobre a situação do Brasil.

Após esta introdução, a senhora japonesa, natural de Tokyo,  começou a contar.

Depois de completar os estudos no Japão, decidiu conhecer o mundo. Viajou por  dois anos, trabalhando como interprete em navios japoneses.   Isto graças ao domínio da língua inglesa.  Chegou no Brasil com 23 anos e foi logo para a comunidade japonesa situada perto de São Roque. Lá  dava aulas de japonês para os nascidos no Brasil.  Foi lá também que conheceu  um rapaz com quem se casou e teve filhos que hoje vivem no Japão. O marido faleceu e ela veio para São Paulo. Com tristeza relatou que após 40 anos de trabalho dedicado no hospital Nippon,  tinha sido dispensada inesperadamente de modo brusco e sem consideração  ou respeito. Isto ainda a estava magoando muito.

Voltando ao assunto: situação politica da sucessão presidencial, a senhora começou a me contar  com grande entusiasmo que, atualmente,  no Japão estavam acontecendo  eleições. Disse que  devido ao fuso horário, ela quase não dormia.  Ficava assistindo NHK  (rede de TV japonesa).

Ela queria inteirar-se de  tudo sobre as eleições.  Falou e explicou-me a respeito da monarquia e parlamentarismo. Me contou sobre o desejo de renuncia do atual imperador Hiroito por motivos de saúde e sobre a problemática  de um sucessor.  Também falou sobre Aiko, filha do imperador,  que não pode ser vista como sucessora.   -“ Isto porém deve mudar. “ explicou.

A cada nova descrição ela gesticulava muito com as suas mãos que me lembravam os  movimentos de uma gueixa.

Fiquei ali, sentada, olhando impressionada  este rosto,  outrora certamente bonito,  que hoje exibia os traços do tempo. Os olhos negros, pequenos e puxados acompanhavam as inúmeras expressões  desta face que se transformava  a cada nova palavra, seguindo a emoção dos relatos recordados

Eu ouvia com atenção e curiosidade a revelação desta riqueza de vivência e conhecimentos que esta mulher estava demostrando e transmitindo.

Tinham se passado quase duas horas do inicio da nossa conversa.

Olhei para  o relógio e levantei da cadeira. Já era tarde.  Foi neste instante que ela  também se levantou e se apresentou .

O nome dela é Kyoko e tem 85 anos.

Um encontro casual repleto de surpresas.